Entre buzinas e insultos: o problema não são as bicicletas, é a ignorância
Sempre que falo ou escrevo sobre mobilidade urbana e os direitos dos ciclistas, sou insultado — e até, com alguma frequência, ameaçado. Curiosamente, nunca por um ciclista. Parece que para alguns condutores, partilhar a estrada é um crime e o simples facto de uma bicicleta existir no seu campo de visão é uma provocação pessoal.
Face à estupidez e/ou ignorância, é preciso dizer o seguinte sobre o tema.
Por que tantos automobilistas reagem mal aos ciclistas — e o que mostram as cidades que mudaram
Há uma explicação humana (e nada misteriosa) para a irritação de muitos condutores com a presença de ciclistas: viés do status quo (qualquer alteração à “rotina da faixa da direita” parece uma perda), ilusão de soma-zero (achar que dar espaço à bicicleta “tira” tempo ao carro) e percepção de risco (a incerteza de partilhar a via com veículos mais lentos).
Junta-se a isto a falta de hábito (e às vezes de fiscalização) e obtém-se um cocktail previsível de buzinas, ultrapassagens perigosas e comentários de tasca sobre “os malucos das bicicletas”.
Mas a verdade é que, sempre que uma cidade aposta a sério na bicicleta, os resultados tendem a desmentir o medo inicial: menos tráfego de atravessamento nos bairros, mais segurança, comércio a ganhar fôlego e, sim, mais lugares livres e menos filas, porque uma parte das viagens passa para modos ativos.
Há até um fenómeno bem documentado chamado “evaporação de tráfego”: ao reconfigurar espaço da estrada para pessoas, parte do tráfego simplesmente desaparece — viagens evitadas, combinadas ou feitas noutro modo/horário — em vez de “transbordar” eternamente para as ruas vizinhas.
Cidades que viraram o jogo (com números)
Sevilha (Espanha): de “quase zero” a cidade ciclável em 5 anos
Entre 2007 e 2011, Sevilha construiu uma rede contínua e segregada (de cerca de 12 km para mais de 120 km) e viu a quota da bicicleta saltar de valores residuais para mais de 5% do total de deslocações diárias. O resultado foi tão claro que outras cidades espanholas seguiram o exemplo.
Paris (França): eixos protegidos, CO₂ em baixa
Em Paris, a transformação da Rue de Rivoli num corredor quase exclusivo para modos suaves levou a uma duplicação do uso da bicicleta, redução de emissões e melhoria do fluxo pedonal. Hoje, a capital francesa investe de forma continuada em ciclovias e nas chamadas “ruas escolares” para proteger quem se desloca sem motor.
Copenhaga (Dinamarca): quando a bicicleta é mainstream
Mais de 50% dos residentes em Copenhaga deslocam-se diariamente de bicicleta para o trabalho ou escola. Há mais bicicletas que automóveis a atravessar o centro. E não se trata de ideologia: é infraestrutura de qualidade, manutenção e planeamento. O resultado é uma cidade mais limpa, mais calma e com menos pressão sobre o estacionamento.
Londres – Waltham Forest (Reino Unido): menos carros, comércio a crescer
No projeto “Mini-Holland”, o tráfego automóvel caiu 56% nas ruas principais e 10.000 veículos/dia desapareceram do bairro. Ao mesmo tempo, o volume de negócios local cresceu 30% e as lojas vazias diminuíram 17%. Ou seja: menos trânsito, mais vida.
Nova Iorque (EUA): segurança para todos, não só para quem pedala
Nos corredores com ciclovias protegidas, a taxa de ferimentos graves desceu drasticamente — não apenas entre ciclistas, mas também entre condutores e peões. O desenho urbano inteligente beneficia toda a gente.
Mais bicicletas = menos trânsito e mais estacionamento
Não é um slogan — é um facto.
Quando as cidades implementam políticas coerentes (rede protegida + acalmia de tráfego + fiscalização), o que acontece é simples:
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Menos carros nas deslocações curtas, as que mais entopem e geram procura de estacionamento “à porta”;
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Redução das filas nos acessos centrais;
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Maior eficiência no uso do espaço público;
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E uma melhor qualidade de vida para todos — inclusive para quem continua a precisar de usar o carro.
Porque é que a resistência inicial é tão forte
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Hábito e identidade: o carro é visto como uma extensão da liberdade individual; qualquer mudança parece uma perda.
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Percepção de injustiça: “tiraram-me uma faixa”, mesmo quando a rua passa a mover mais pessoas por hora.
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Medo do desconhecido: sem rede completa, a convivência é pior e confirma o preconceito (“os ciclistas atrapalham”).
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Comunicação falhada: quando as autarquias anunciam obras “contra carros” em vez de “a favor das pessoas”, criam resistência desnecessária.
O que funciona — lições para Portugal
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Rede contínua e segura: Sevilha provou que troços isolados não mudam comportamentos.
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Eixos âncora no centro: Paris mostrou que bastam alguns corredores bem-feitos para inverter padrões de mobilidade.
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Manutenção e qualidade: Copenhaga é exemplo de consistência e limpeza nas ciclovias.
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Acalmia e comércio local: Waltham Forest demonstrou que menos carros significa mais clientes a pé ou de bicicleta.
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Transparência e dados: publicar contagens, tempos e sinistralidade reforça a confiança e reduz ruído político.
Conclusão
A reação negativa de muitos automobilistas é compreensível — mas não é inevitável.
Cada cidade que apostou numa rede ciclável coerente viu melhorar a segurança, o comércio e o bem-estar urbano. A bicicleta não é um inimigo do automóvel — é uma ferramenta para que os carros circulem melhor, para que as cidades respirem e para que as pessoas tenham mais opções.
No fundo, quanto maior o número de ciclistas, menor o trânsito automóvel, maior o número de lugares disponíveis para estacionar, menor o tempo perdido nas filas e mais curta a distância do carro ao destino.
O problema nunca foram as bicicletas. O problema é a teimosia em não querer perceber o óbvio.

