A tecnologia tem-nos ajudado a desvendar alguns dos maiores mistérios da natureza — e em particular, do corpo humano. Este avanço tem sido especialmente útil nas áreas da medicina e do desporto, permitindo compreender como melhorar a nossa qualidade de vida e aumentar a esperança média de vida. Mas há algo que defendo com convicção: viver mais anos só faz sentido se esses anos forem vividos com qualidade.
Tecnologia ao Serviço da Saúde… e do Rendimento
Pessoas com diabetes têm hoje acesso a dispositivos eletrónicos que medem continuamente os níveis de glicemia em tempo real. Colocados no braço, estes sensores permitem monitorizar o impacto da alimentação, o funcionamento da insulina — hormona vital para a homeostase — e ajudam a ajustar hábitos para manter o equilíbrio metabólico.
Mas estes dispositivos, originalmente criados para fins clínicos, têm vindo a ganhar uma nova aplicação no desporto de alta exigência, como é o caso das provas de endurance. Atletas de elite e amadores exigentes já os utilizam para otimizar a ingestão de hidratos de carbono, compreender a resposta glicémica a diferentes tipos de suplementos e minimizar quebras de energia (as chamadas “quebras de açúcar” ou bonks).
Em 2023, usei um desses dispositivos de forma experimental, com o objetivo de perceber melhor os efeitos da nutrição desportiva que aplico em provas de resistência. Queria saber que impacto tinha cada alimento nos meus níveis de glicose, quanto tempo levava a glicose a entrar na corrente sanguínea após a ingestão e qual o tempo de permanência dos níveis elevados. A experiência foi extremamente esclarecedora.
O Mistério do Pico Matinal de Glicose
Durante este período de testes, reparei num fenómeno intrigante: sistematicamente, entre 30 a 40 minutos antes de acordar, havia um pico de glicemia — mesmo tendo estado a dormir durante as 8 horas anteriores e sem ingerir qualquer alimento.
Como o meu protocolo de sono é muito estável — deito-me entre as 22h e as 23h, adormeço rapidamente e acordo com a luz natural que entra pela janela — comecei a questionar o que justificaria este comportamento aparentemente “espontâneo” do meu organismo.
Luz Natural, Sono de Qualidade e Ritmo Circadiano
Há anos que cá em casa dormimos com a janela aberta. A principal razão prende-se com as enxaquecas da minha esposa e do meu filho mais velho. Após alguma pesquisa, encontrei estudos que apontavam para a relação entre o despertar súbito em ambientes escuros e o aparecimento de cefaleias, devido à desregulação do ciclo circadiano. Desde que passámos a despertar com a luz natural e sem despertador, as enxaquecas deixaram de ser frequentes — e esse simples hábito mudou completamente as nossas manhãs.
O Papel Vital do Cortisol no Despertar e no Desempenho Físico
Foi então que, ao aprofundar o estudo dos fenómenos bioquímicos do cérebro — algo que se tornou uma paixão paralela à minha função de treinador — percebi que este pico matinal de glicose é não só comum como desejável em pessoas saudáveis.
A explicação está ligada ao chamado “fenómeno do despertar”, que envolve uma hormona muitas vezes mal compreendida: o cortisol.
Apesar de vulgarmente apelidada de “hormona do stress”, o cortisol é essencial à vida e segue um ritmo circadiano natural. A sua produção atinge o pico justamente antes de acordarmos, preparando o corpo para a vigília. Este aumento de cortisol provoca a libertação de glicose pelo fígado (glicogenólise) para fornecer energia rápida ao cérebro e músculos, mesmo antes de termos tempo de tomar o pequeno-almoço.
Estudos indicam que o aumento do cortisol entre as 4h e as 8h da manhã está associado ao início do estado de vigília, regulação da tensão arterial, aumento da glicemia e preparação para a atividade física e mental. (Ver estudos de referência: Born et al., 1999; Scheer et al., 2006)
Mas o papel do cortisol vai muito além de nos acordar.
Cortisol: O Motor Invisível do Rendimento Desportivo
No desporto, o cortisol desempenha uma função crítica: mobiliza energia rapidamente, facilita a resposta cardiovascular ao esforço, regula a inflamação e contribui para a adaptação ao treino. Durante o exercício físico intenso, os níveis de cortisol sobem naturalmente — e isso é benéfico.
O problema não é o aumento pontual durante o esforço (isso é fisiológico e desejável), mas sim a exposição crónica e prolongada a níveis elevados, geralmente causada por stressores externos mal geridos, como a falta de sono, má alimentação ou excesso de treinos sem recuperação adequada.
Desmistificar esta hormona é essencial. Sem cortisol, não teríamos capacidade de resposta rápida ao esforço, nem conseguiríamos manter a performance física e mental em situações exigentes. Tal como a adrenalina, o cortisol é um agente de sobrevivência e adaptação.
“O cortisol ajuda a manter os níveis de glicose durante o exercício prolongado, regula a inflamação e participa nos processos de recuperação e adaptação muscular” (Wilmore, Costill & Kenney, Physiology of Sport and Exercise, 2012)
Conclusão: Tecnologia, Ciência e Autoconhecimento
O que esta experiência me ensinou é que a tecnologia, quando bem usada, pode ser uma aliada poderosa na compreensão dos nossos próprios ritmos e respostas fisiológicas. Os sensores de glicose, que à partida servem para pessoas com diabetes, mostraram-me um lado fascinante da fisiologia humana: o nosso corpo prepara-se todos os dias para despertar, mesmo sem ajuda externa — e fá-lo com uma precisão surpreendente.
Na intersecção entre tecnologia, ciência e escuta ativa do corpo, está a chave para viver melhor e treinar com mais inteligência.
Viver com qualidade é também isto: estar atento aos sinais do corpo, respeitar os ritmos naturais e procurar conhecimento — seja com base em experiências, leituras ou na observação atenta do quotidiano. A ciência está cá para nos ajudar a viver melhor, não apenas mais tempo, mas com mais lucidez, energia e bem-estar.
Referências Sugeridas para Citação Científica:
Born, J., Hansen, K., Marshall, L., Mölle, M., & Fehm, H. L. (1999). Timing the end of nocturnal sleep. Nature, 397(6714), 29–30.
Scheer, F. A. J. L., Hilton, M. F., Mantzoros, C. S., & Shea, S. A. (2009). Adverse metabolic and cardiovascular consequences of circadian misalignment. PNAS, 106(11), 4453–4458.
Wilmore, J. H., Costill, D. L., & Kenney, W. L. (2012). Physiology of Sport and Exercise. Human Kinetics.

