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A indubitável culpa dos ciclistas!

Nos estudos de criminologia, Maurice Cusson introduz a ideia — polémica, mas útil — de que a vítima pode, em certos casos, contribuir para o crime que sofre. Seja por negligência, imprudência, ou simplesmente por desafiar normas tácitas que regem o espaço social. Este olhar complexo sobre a vitimização ajuda-nos a perceber como muitas vezes a culpa é projetada sobre quem desafia a ordem estabelecida.

E o que tem isto a ver com bicicletas?

Tudo.

Quando um ciclista circula fora da ciclovia, é imediatamente acusado de ser imprudente, arrogante, talvez até provocador. Se opta por andar na estrada — no seu pleno direito legal — torna-se rapidamente o vilão do trânsito. É, aos olhos de muitos, “a vítima que se pôs a jeito”. Mas esta lógica ignora algo essencial: o contexto urbano.

As ciclovias, quando existem, são muitas vezes mal desenhadas, descontínuas, mal sinalizadas ou entupidas com obstáculos. Há falta de investimento, de planeamento e, sobretudo, de vontade política. Tudo isto somado a um ambiente rodoviário agressivo e dominado pelo automóvel.

Quem é o verdadeiro culpado?

É aqui que a pergunta se impõe: serão os ciclistas culpados por se recusarem a aceitar infraestruturas indignas? Por quererem circular com segurança? Por desafiarem a lógica de uma cidade desenhada à medida dos carros?

Pois eu acredito que sim.

E explico porquê, com uma história pessoal.


Fé, bicicletas e coerência

Batizei-me aos 27 anos, numa tentativa sincera de acreditar. Sempre invejei quem consegue confiar numa força superior. Não por fraqueza, mas porque acredito que a fé — quando verdadeira — é uma forma de equilíbrio humano.

Nesse caminho, conheci o padre Orlando, pároco de Cedofeita. Homem de ideias brilhantes, que me ensinou muito. Uma das suas perguntas recorrentes era:

— Todas as pessoas que têm bicicleta são ciclistas?

— Não, respondia eu.

— Então, o que é preciso para se ser ciclista?

— Treinar, competir, viver em função do ciclismo… mas, sobretudo, respeitar as regras.

E ele dizia:

— A Igreja é igual. Não basta teres uma Bíblia em casa, ou ires à missa quando te apetece.

Essa comparação ficou comigo. Porque nos obriga a pensar sobre pertença, coerência e compromisso.


Ser ciclista é um ato de fé (e de atitude)

Se levarmos esta ideia à mobilidade urbana, então sim — os ciclistas são culpados.
Culpados de continuar a pedalar apesar da hostilidade.
Culpados de querer cidades melhores.
Culpados de exigir espaço numa cidade que gira em torno do automóvel.

Talvez ser ciclista seja mesmo um ato de fé.
Mas, mais do que fé, é um ato de atitude.

Porque fé sem ação não transforma nada. Como dizia John Wooden:
“Se não te preparaste, estás preparado para perder.”

E andar na via pública exige essa atitude. Exige reivindicação consciente:

  • Os vermelhos são para parar.

  • Os stops são para respeitar.

  • Os sinais de mudança de direção são fundamentais.

  • E o lugar da bicicleta é na faixa de rodagemnão na berma.

Na berma, o ciclista perde visibilidade, segurança e legitimidade.
Na faixa de rodagem, produz acalmia de tráfego, ganha presença, e reforça uma ideia essencial:
nós somos trânsito.


O verdadeiro problema tem quatro rodas

Em Portugal, entre 70% a 85% dos automóveis ligeiros circulam com apenas uma pessoa dentro: o condutor.

Exemplos concretos:

  • Lisboa: 75% a 80% dos carros nas horas de ponta têm apenas o condutor.

  • Porto: Entre 70% a 78% dos veículos também circulam sem passageiros.

  • A taxa média de ocupação em Portugal é de apenas 1,3 a 1,4 pessoas por carro.

Estamos a ocupar espaço público valioso — com veículos que transportam… quase ninguém.


Mas há esperança (e dados que a sustentam)

Vários estudos internacionais mostram que uma pequena redução no número de carros pode gerar enormes melhorias no tráfego urbano:

Redução do congestionamento com menos carros:

  1. Transport for London (Reino Unido):
    Retirar 10% dos carros nas horas de ponta pode reduzir os tempos de deslocação em 25%, graças ao efeito não linear do congestionamento.

  2. INRIX & TomTom Traffic Index:
    Reduções de 15% no número de carros podem eliminar 60 a 70% do congestionamento visível.

  3. Universidade de Utrecht (Países Baixos):
    Transferir apenas 10 a 20% dos automobilistas para a bicicleta pode reduzir 40% a 70% do tráfego em cidades médias.

  4. European Cyclists’ Federation (2020):
    Mudar 10 a 20% das deslocações urbanas para bicicleta pode reduzir até 50% do congestionamento — especialmente em cidades compactas e com tráfego denso.


Conclusão: o problema é o automóvel

A bicicleta não é o problema. O ciclista também não.
O verdadeiro problema — estrutural, urbano, ambiental — é o automóvel privado enquanto solução dominante para mobilidade urbana.

Por isso, sim, talvez os ciclistas sejam culpados.
Culpados de desafiar o status quo.
Culpados de lembrar que outra cidade é possível.

E tu? Vais continuar a culpar os ciclistas… ou vais começar a ver o problema real?

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