A Volta a Portugal em bicicleta já foi o maior espetáculo desportivo do país, capaz de parar aldeias inteiras e criar paixões que moldaram gerações. Mas, enquanto o ciclismo internacional evoluiu para um desporto de alta tecnologia e projeção global, a nossa prova rainha parece ter ficado presa no tempo. Entre rivalidades históricas, limitações financeiras e um modelo organizativo antiquado, a Volta vive hoje um paradoxo curioso: envelhece ao contrário, como no “Efeito Benjamin Button”. Será que ainda vai a tempo de inverter o percurso?
1. Volta a Portugal: das ondas da rádio às estradas do interior
No início do século XX, num país pobre — e nenhum país é verdadeiramente pobre se não produzir pobres — a televisão era luxo para poucos e a rádio, embora mais acessível, ainda não chegava a todos. Foi através dela que muitos ouviram, pela primeira vez, falar da passagem de ciclistas pelo interior esquecido de Portugal. A Volta não era apenas uma prova: era um evento que levava movimento, emoção e novidade a locais onde pouco acontecia.
2. O ciclismo como criador de paixões e rivalidades
A passagem da Volta a Portugal criou rivalidades e fidelidades clubísticas que, mais tarde, muitos atribuiriam ao futebol. Mas, antes do relvado dominar corações, foram as bicicletas que dividiram opiniões, alimentaram debates e colocaram aldeias inteiras a torcer pelo “seu” ciclista.
3. O espetáculo e o negócio por trás da Volta a Portugal
O desporto, seja qual for, é também entretenimento. E para haver espetáculo, é preciso investimento. Tanto os atletas como quem organiza o evento precisam de viver — e isso só acontece se houver dinheiro a circular. O ciclismo é um “circo” legítimo: exige logística, preparação, patrocínios e, claro, retorno para quem investe.
“O espaço mediático ocupado pela Volta ao Algarve equivale a um valor de 36 054 649 €, um recorde absoluto desde 2018… e representa um retorno de 46 vezes o orçamento do evento.” (voltaaoalgarve.com)
Isso reforça como o calendário nacional está desequilibrado: o Alentejo ganhou vida própria, e a Volta ao Algarve atrai bem mais visibilidade do que a própria Volta a Portugal. Além disso, os municípios têm de pagar para garantir partidas ou chegadas — e justificar esse investimento nem sempre é simples ou imediato.
4. Comparar com o estrangeiro é injusto… mas inevitável
Enquanto o ciclismo profissional lá fora evoluiu com equipas estruturadas, treino científico, tecnologia de ponta e marketing global, em Portugal a realidade é bem outra. Não é de admirar que um “Ferrari” ganhe a um “Fiat”, mesmo que o condutor do Fiat seja talentoso e movido pela paixão. A diferença de meios dita resultados.
Esta disparidade financeira é semelhante ao que acontece no futebol português: Benfica, FC Porto e Sporting têm orçamentos que, individualmente, superam os restantes clubes juntos — uma realidade que mina a competitividade. No ciclismo, quem dispõe de mais recursos também parte sempre com clara vantagem.
5. O “Efeito Benjamin Button” no ciclismo nacional
O paradoxo é evidente: enquanto o ciclismo internacional envelhece com classe e se torna mais sofisticado, a Volta a Portugal parece andar para trás, agarrada a modelos antigos. Sobrevive mais pela nostalgia e apego cultural do que pela capacidade de se renovar.
6. Qual o futuro da Volta a Portugal?
A Volta a Portugal já provou ser capaz de unir o país e mostrar o melhor das nossas paisagens. Mas, sem investimento sério, renovação do modelo e modernização, corre o risco de se tornar uma relíquia de tempos passados.
O futuro pode passar por sermos um país formador de talentos — um modelo à imagem da Axeon, focado nas camadas jovens — e criar uma super-equipa reunindo os melhores ciclistas de elite para correr no estrangeiro. Mas quem estaria disposto a deixar de lado os interesses locais em favor de um objetivo nacional mais ambicioso? Isso exigiria coragem — e humildade.
Vários ciclistas portugueses já provaram que esta via funciona:
João Almeida, ex–Hagens Berman Axeon, assinou em 2019 pelo Deceuninck–Quick-Step e hoje corre no UAE Team Emirates. No Giro d’Italia 2020, vestiu a maglia rosa durante 15 dias e terminou em 4.º lugar — a melhor classificação de sempre por um português na prova.
Rúben Guerreiro, que integrou o Axeon em 2015–16, subiu ao WorldTour pela Trek-Segafredo e hoje veste as cores da Movistar Team.
André Carvalho, formado no Axeon em 2019–20, entrou no WorldTour com a Cofidis em 2021.
António Morgado, que correu no Axeon em 2023, foi diretamente para o UAE Team Emirates após destacar-se no escalão sub-23.
Em formações promovidas pela Federação Portuguesa de Ciclismo, ouvi repetidamente a mesma sugestão de especialistas internacionais: mudar a data e a duração da Volta. O argumento de agosto para “aproveitar emigrantes nas estradas” está ultrapassado — o padrão migratório e de férias já não é o mesmo. Mas continuamos agarrados ao modelo, mesmo com soluções à vista.
E, para agravar, o ciclismo português tem sido atingido por casos de doping que minam a credibilidade da modalidade:
“Sete ciclistas portugueses, incluindo três ex-vencedores da Volta a Portugal, foram suspensos por doping.” (cyclingweekly.com)
O diretor-desportivo Nuno Ribeiro, antigo vencedor da Volta, foi sancionado com 25 anos de suspensão por envolvimento em tráfico e administração de substâncias proibidas. (cyclingmagazine.ca)
Ou seja…
A Volta a Portugal foi, durante décadas, um evento que uniu o país e levou emoção a lugares esquecidos. Hoje, sofre com falta de investimento, fragmentação do calendário, concorrência interna como a Volta ao Algarve, ausência de modernização e casos de doping. Há soluções claras — mudar datas, apostar na formação, criar cooperação nacional e inspirar-se em modelos como o Axeon — mas falta coragem para executá-las.
Mais do que falar apenas de atletas, este debate é sobre a gestão do espetáculo: uma engrenagem que sustenta carreiras, dá trabalho a todo o staff envolvido, garante retorno aos patrocinadores e alimenta o sonho de quem quer ser ciclista. Um modelo bem estruturado pode transformar a Volta numa plataforma de desenvolvimento nacional, mas para isso é preciso visão, união e a capacidade de colocar o interesse coletivo acima do individual.
Texto de opionião: Pedro Silva
Imagem: AI

