João é daqueles ciclistas que têm o calendário todo desenhado: treinos madrugadores, longos fins-de-semana de estrada, e uma disciplina quase militar na dieta. Mas este ano decidiu algo diferente: duas semanas de férias, longe da bicicleta. “Preciso desligar”, disse ele. Passou 15 dias na praia, sem rolo, sem sapatilhas, sem sequer olhar para o Strava.
Ao regressar, as primeiras pedaladas foram estranhas. O coração parecia bater mais rápido que o normal, as subidas habituais pareciam mais íngremes e o “motor” não tinha aquela resposta imediata. João sentia na pele o que a ciência descreve há décadas: em apenas 15 dias parado, o corpo começa a mudar — e não para melhor.
O que a ciência diz sobre 15 dias sem treinar
Estudos com ciclistas e atletas de endurance mostram que, em apenas 2 semanas sem treino, há:
Queda no VO₂max de cerca de 3–8%, sobretudo pela redução rápida do volume plasmático e consequente menor débito cardíaco.
Perda de resistência (tempo até à exaustão) na ordem dos ~9%.
Redução de força ligeira, especialmente nos quadríceps, ainda que a força máxima se mantenha relativamente estável em pausas curtas.
“Two weeks of detraining reduces cardiopulmonary functions and quadriceps strength.” — European Journal of Sport Science
Porque é que isto acontece
Ao parar totalmente, o corpo deixa de receber o estímulo que mantém adaptadas as funções cardiovasculares e musculares.
Primeiros dias: baixa o volume plasmático → desce o stroke volume → cai o VO₂max.
Segunda semana: começa a reduzir a atividade enzimática oxidativa e a capacidade de extração de oxigénio pelos músculos.
Sensação na estrada: mais “falta de ar” em intensidades antes confortáveis e menor tolerância a esforços prolongados.
“Short-term detraining (≤4 semanas) em atletas treinados é marcado por declínio rápido do VO₂max e do volume sanguíneo… a frequência cardíaca não compensa a queda do volume sistólico.” — Mujika & Padilla, Sports Medicine
Férias: vilãs ou aliadas?
Para muitos ciclistas, a ideia de parar completamente é quase um sacrilégio. A mente repete: “Se eu parar, vou perder tudo.” Mas a verdade é que o descanso não é o inimigo — é parte essencial do processo.
As férias dão algo que nenhum treino intervalado consegue: recuperação mental e física profunda. É nessa pausa que o corpo tem tempo para reparar microlesões, regular hormonas ligadas ao stress (como o cortisol) e restabelecer reservas energéticas.
Sim, há perdas — e a ciência mostra claramente isso — mas são perdas reversíveis. Mais importante ainda: um atleta que regressa descansado tende a treinar com mais consistência e motivação, reduzindo o risco de overtraining.
O segredo está na gestão da volta. Quem regressa em modo “tudo ou nada” arrisca lesões e frustração. Quem progride gradualmente, recupera a forma em poucas semanas e, muitas vezes, volta mais forte mentalmente do que antes da pausa.
“O descanso é parte do treino. É quando se constrói a capacidade para a próxima carga.” — frase comum no treino de endurance, validada por inúmeros estudos
Como voltar sem perder mais
O maior erro que um ciclista pode cometer depois de 15 dias parado é tentar “recuperar o tempo perdido” numa semana. O resultado? Fadiga excessiva, risco de lesão e, paradoxalmente, mais tempo até recuperar a forma.
O regresso deve ser pensado como um aquecimento para a temporada, mesmo que esta já esteja em andamento. É a altura de reativar o sistema cardiovascular, relembrar os músculos do padrão de pedalada e reestabelecer a confiança no selim — sem pressa.
Plano seguro e eficaz:
Semana 1: reduza o volume para 50–60% do habitual, mantenha-se entre Z1–Z2 e insira apenas um estímulo curto em Z3 (ex.: 4 × 2’).
Semana 2: aumente para 70–80% do volume, introduza 1 sessão de sweet spot (Z3 alto/Z4 baixo) e mantenha os restantes treinos controlados.
Com esta abordagem, a maioria dos ciclistas bem treinados recupera a sensação de “motor afinado” em 2–3 semanas. Mais importante: evita-se o ciclo de exagero → fadiga → nova quebra, que tanto atrasa progressos.
Pense no regresso como subir uma rampa longa: começar devagar para chegar ao topo com força, em vez de explodir a meio.
Moral da história
Parar 15 dias não vai transformar um ciclista de endurance num esparguete cozido sem recuperação possível. Vai, sim, roubar algum fôlego e fazer com que aquela subida habitual pareça mais longa… e com mais vento contra.
Mas também vai devolver algo precioso: a vontade genuína de voltar a pedalar. No fim, um corpo ligeiramente mais lento recupera-se rápido — já a motivação perdida, nem sempre.
Então, se fores como o João, lembra-te disto: o descanso é como uma paragem numa pastelaria a meio do treino — parece que atrasa, mas é ele que te dá energia para chegar ao fim. E se no primeiro treino pós-férias sentires que “está tudo preso”, não é falta de talento… é só o corpo a dizer: “bem-vindo de volta”.

