Imagina que entras numa loja e, em vez de escolheres uma bicicleta de uma prateleira, alguém te pergunta: “Como pedalas? Onde pedalas? Como é o teu corpo, o teu dia a dia, os teus objectivos?” E só depois, a tua bicicleta começa a ganhar forma — como um fato por medida, pensado milimetricamente para ti. Parece utópico? Pois… em muitos casos, ainda é.
Enquanto noutros países este nível de personalização já é uma realidade acessível, por cá continua, na maioria das vezes, a ser um exercício de imaginação. E não falo apenas do tamanho do quadro — isso é só o princípio. Falo de pensar a bicicleta como um sistema integrado, em que cada componente se adapta ao corpo e às necessidades do ciclista. É aqui que entra o bikefit, um processo que vai muito para lá de alinhar selins e guiadores. É ciência, é arte, é escuta activa.
Neste artigo, partilho o que aprendi ao longo de 15 anos a ajustar bicicletas a pessoas, a tentar criar equilíbrio entre máquina e ser humano. Pelo caminho, deixo alguns factos científicos, experiências no terreno, e até umas pitadas de sarcasmo — porque no mundo do ciclismo, há verdades, modas, mitos… e influencers, claro.
Prepara-te para desmontar ideias feitas, desafiar certezas absolutas e, quem sabe, olhar para a tua bicicleta com outros olhos.
Muito para lá do tamanho do quadro
Durante estes anos todos, uma das perguntas que mais ouvi foi: “Qual é o tamanho certo de quadro para mim?” Como se isso resolvesse tudo. Como se a bicicleta fosse um fato de treino comprado numa loja qualquer — tamanho M, está bom. A realidade é que, no ciclismo, o quadro é apenas o ponto de partida. Um esqueleto. O que vem depois — guiador, avanço, selim, pedivelas, sapatos, travessas — é onde a magia (ou o desastre) acontece.
Mas isso raramente cabe num reels de 15 segundos com música épica e legendas amarelas. É mais fácil vender “a bike que o Pogacar usa” do que explicar porque é que essa escolha pode ser um disparate para 99% dos ciclistas.
O bikefit: arte e ciência… e paciência
O bikefit é, para mim, a arte de traduzir o corpo para a linguagem da bicicleta. Metade ciência, metade experiência, e outra metade — sim, já vamos com 150% — é paciência para desmontar mitos e ouvir que “o influencer tal disse que o selim tem de estar para trás porque dá mais potência”.
Na parte da ciência, sim, há fundamentos sólidos: anatomia, fisiologia, biomecânica. O que não existe é uma app milagrosa que consiga substituir o olhar clínico de quem já viu centenas de corpos, assimetrias, padrões de movimento e compensações. E depois, claro, vem o Instagram, com dicas universais para resolver problemas que são tudo menos universais.
O selim: onde tudo pode correr bem… ou muito mal
O selim é aquele componente que parece simples até começares a pedalar mais de uma hora seguida. É ali que te apoias durante grande parte do tempo — e quem recebe o peso são tecidos moles e os velhos conhecidos ísquios. Se não houver sintonia, a experiência rapidamente passa de prazerosa a penitente.
A ciência já mostrou isto com clareza. Potter et al. (2008), por exemplo, explicaram como a escolha do selim pode reduzir significativamente a pressão perineal e o risco de compressões nervosas. Mas claro, no feed de sugestões rápidas, poucos têm tempo (ou paciência) para isso. É muito mais interessante um vídeo a dizer que “o selim que uso mudou a minha vida”.
Mudou, talvez. Mas ainda que não seja este o que me serve melhor.
Sapatos e palmilhas: um mundo invisível… até doer
Se me dessem um euro por cada vez que um ciclista se queixou de dormência nos pés, tinha uma loja só de palmilhas personalizadas. O problema é que ninguém quer saber disso até começar a doer. Os sapatos, por mais caros que sejam, só funcionam bem se estiverem ajustados ao pé — e as palmilhas deviam ser feitas à medida, como se faz com óculos.
Baur et al. (2020) demonstraram que palmilhas personalizadas melhoram o alinhamento, aumentam o conforto e estabilizam o joelho na pedalada. Mas pronto, se o vídeo no YouTube recomenda “andar com as travessas um bocadinho mais para trás”, quem sou eu para contrariar, certo?
E já que falamos em travessas: o posicionamento delas é uma ciência por si só. Posição, rotação, recuo… tudo influencia a biomecânica do tornozelo, joelho e anca. Peveler et al. (2008) mostraram o impacto directo da posição do pé na produção de potência. Mas esse estudo tem mais de 20 páginas e zero emojis — portanto não costuma viralizar.
Guiador e avanço: o cockpit onde tudo começa (ou descamba)
A maioria escolhe o guiador com base na largura dos ombros. E o avanço? Depende do que veio montado na bicicleta ou do que o vendedor sugeriu. E assim se define o “cockpit” onde vais passar centenas de horas. Não soa absurdo?
O guiador tem múltiplas variáveis: reach, drop, ângulo dos drops, posição das manetes. Tudo isso influencia a postura, o conforto e a eficiência. Faria et al. (2005) explicam isso com clareza num estudo onde ligam a posição do tronco ao consumo de oxigénio.
E sobre o avanço, Too (1990) já dizia que o comprimento afecta directamente a eficiência mecânica. Mas hoje, com a febre dos guiadores integrados (a estética acima de tudo), o que era ajustável tornou-se um luxo caro. Trocar avanço? Boa sorte, são mais 400 euros.
Cranks curtos: a nova religião
Pogacar usa cranks curtos. Logo, tu também deves usar. Afinal, ele ganhou o Tour. Esta lógica simplificada está por todo o lado e é alimentada por vídeos virais que não explicam rigorosamente nada.
Martin & Spirduso (2001) analisaram o impacto do comprimento dos cranks na potência e cadência. E Macdermid & Edwards (2010) foram claros: cranks curtos podem aumentar o esforço cardiovascular e reduzir a eficiência. Mas como explicar isso num TikTok de 30 segundos?
A verdade é que, enquanto alguns podem beneficiar de pedivelas mais curtas (por questões morfológicas ou clínicas), para a maioria, a troca traz mais desvantagens do que ganhos. Falo com base na ciência — e na experiência acumulada de centenas de bikefits.
Andamentos: o ajuste esquecido
Personalizar a transmissão devia ser prioridade. Se pedalas em zonas montanhosas, a escolha de pratos e cassetes tem um impacto directo na tua cadência, na tua fadiga e no rendimento.
Lucia et al. (2001) mostraram que a cadência ideal varia consoante o tipo de ciclista e o tipo de terreno. Mas claro, é mais fácil vender um grupo completo de 12 velocidades do que explicar porque é que talvez precises de menos… ou mais.
Pré-bikefit: ferramenta valiosa ou exercício académico?
Em teoria, um pré-bikefit faz todo o sentido. Na prática, poucas marcas e lojas estão preparadas para usar essa informação. Porque personalizar uma bicicleta de raiz é algo quase utópico em Portugal. E por isso, o tal pré-bikefit acaba por ser um exercício de curiosidade, uma boa conversa — mas pouco aplicável para quem vai comprar um modelo pré-configurado em promoção.
Já vi marcas tentarem entrar em Portugal com promessas de montagem personalizada. Duraram pouco. Porque o ciclismo já é um nicho, e montar bicicletas peça a peça… é um nicho dentro do nicho. Só que há quem ainda acredite. E eu sou um desses.
A bicicleta como extensão do corpo… e da alma
No fim de contas, o que procuro — e o que procuro oferecer a cada ciclista que passa por mim — não é apenas conforto ou performance. É harmonia. É aquele momento em que tudo encaixa: a pedalada flui, a respiração acompanha, e o corpo deixa de ser um obstáculo para se tornar motor. A bicicleta, quando bem ajustada, transforma-se numa extensão do nosso ser. É liberdade, é foco, é terapia em movimento.
Ao longo destes 15 anos a fazer bikefit, aprendi que não há dois corpos iguais, tal como não há duas pedaladas iguais. E se respeitarmos essa individualidade, conseguimos algo extraordinário: transformar um simples conjunto de carbono, alumínio e borracha num instrumento de realização pessoal.
Podemos continuar a seguir modas e dicas rápidas — e, por vezes, até aprender algo útil. Mas se queremos realmente evoluir, se queremos pedalar com propósito e longevidade, precisamos de parar, observar, ouvir o corpo… e ajustar. Porque no ciclismo, como na vida, os melhores resultados vêm quando tudo está no sítio certo. E o sítio certo, raramente vem numa caixa pronta a usar.
Referências científicas
Baur, H., Müller, S., Hirschmüller, A., & Weber, F. (2020). Influence of custom-made orthopaedic insoles on the biomechanics of cycling. Journal of Sports Sciences, 38(3), 318–325.
Faria, E. W., Parker, D. L., & Faria, I. E. (2005). The Science of Cycling: Physiology and Training – Part 1. Sports Medicine, 35(4), 285–312.
Lucia, A., Hoyos, J., & Chicharro, J. L. (2001). Preferred pedaling cadence in professional cycling. Medicine & Science in Sports & Exercise, 33(8), 1361–1366.
Macdermid, P. W., & Edwards, A. M. (2010). Effect of crank length on cycle ergometry performance in endurance-trained cyclists. Journal of Sports Science & Medicine, 9(3), 306–310.
Martin, J. C., & Spirduso, W. W. (2001). Determinants of maximal cycling power: crank length, pedaling rate and gender. Medicine & Science in Sports & Exercise, 33(4), 763–769.
Peveler, W. W., Green, J. M., & Smith, D. P. (2008). Effects of saddle height on anaerobic power production in cycling. Journal of Strength and Conditioning Research, 22(4), 1355–1359.
Potter, J. J., Sauer, J. L., Weisshaar, C. L., & Ploeg, H. L. (2008). Biomechanical analysis of the bicycle saddle: Effects of design and rider anatomy. Clinical Biomechanics, 23(7), 798–805.
Too, D. (1990). The effect of hip position and seating posture on anaerobic power and capacity in cycling. International Journal of Sports Medicine, 11(5), 353–358.

