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Desporto infantil em crise: culpa dos jovens ou dos adultos?

Em conversas com colegas meus (treinadores), percebo que a minha dificuldade em fixar crianças no desporto que leciono, é transversal! O discurso no fundo é semelhante. Se retirarmos o nome da modalidade, as queixas são simultaneamente as mesmas.

Outra particularidade, é de uma opinião em comum, a perceção de que em apenas 10 anos o comportamento das crianças que chegam aos clubes para experimentar o desporto, mudou drasticamente.

Mas afinal onde reside o problema, porquê que os jovens tão depressa se aproximam das modalidade, como rapidamente as deixam de parte. Há realmente uma mudança no comportamento dos jovens, ou estamos é a lidar com um grupo diferente?

De acordo com o Eurobarómetro de 2022, apenas 4% dos portugueses afirmaram praticar exercício físico ou desporto “regularmente”, enquanto 18% o fazem “com alguma regularidade”. Além disso, 73% indicaram nunca praticar exercício ou desporto. O estudo sobre atividade física refere-se à população entre os 18 e os 69 anos, portanto exclui crianças e adolescentes.

Segundo o “Global Status Report on Physical Activity 2022” da Organização Mundial da Saúde:SPMI

  • 78% dos rapazes e 91% das raparigas adolescentes em Portugal não cumprem as recomendações de atividade física diária.

Além disso, dados da União Europeia indicam que:

  • Em 2022, apenas 14% dos jovens portugueses de 15 anos referiram praticar exercício físico diariamente.
 

Podemos pegar nos dados e começar a analisar a situação atual e considerá-la alarmante. Mas os dados são insuficientes, porque se recuarmos 10, ou anos anos no tempo, temos a falta destes mesmos trabalhos para poder haver uma comparação e compreender de forma analítica mudanças comportamentais.

À falta de dados baseamos em entrevistas e uma analise mais subjetiva e empírica.

Na minha opinião eu não acho que estejamos perante o mesmo grupo de crianças e jovens. Ou seja, o perfil de criança e jovem que hoje procura as modalidades desportivas mudou de forma considerável. Em conversa com gerações que nasceram na década de 80, 90 e 00, vemos uma abordagem do desporto muito diferente e que começa logo em casa.

Era o jovem que encontrava a modalidade e que a queria começar a praticar, muito em parte por influencia dos seus pares e amigos na escola, a televisão representava também uma forma de influencia muito relevante, sendo a principal forma de comunicação principalmente nas duas primeiras décadas mencionadas. Mas a assinar e considero relevante: o desporto começava já dentro da adolescência, era escolhido pelo jovem e era este que levava os pais atrás. Hoje, a atividade desportiva tem mais inicio na infância e são escolhidas sobretudo pelos pais.

A influencia também tem muita importância. Sendo que as redes sociais dominam a tendência de orientação, à medida que o contágio social físico (os amigos) perde influência. Há mais crianças e adolescentes motivados a experimentar, devido à glamorização levada a cado pelas redes sociais. E na maioria dos casos, não passa disso mesmo: a vontade de experimentar!

Eu como treinador e educador para o desporto, defendo uma formação alargada e multidisciplinar nas primeiras idades, hoje sabemos que esse estímulo, sobretudo nas gerações que não brincaram na rua com os seus pares, são muito importantes. Mas a determinada altura é fundamental o compromisso, para que o sucesso em alguma área possa ser alcançado.

Mas sobretudo, a excessiva participação e regulação da atividade e comportamento por parte dos pais, tem-se revelado extremamente prejudicial ao desporto e à própria saúde da criança.

“Investigadores australianos verificaram que crianças com boas competências de brincadeira com os pares aos 3 anos apresentavam menos problemas emocionais e comportamentais aos 7 anos, incluindo menor risco de ansiedade e comportamentos agressivos.

Crianças que desenvolvem competências sociais e emocionais desde cedo tendem a ter melhor desempenho académico e maior estabilidade profissional na vida adulta. A interação com pares ajuda a desenvolver empatia, autorregulação e competências de comunicação.”

Há uns anos tive a oportunidade de estar presente num simpósio sobre desporto juvenil, onde um dos palestrantes, um conhecido e valorizado treinador de futebol, criticava precisamente o modelo comportamental dos pais, atribuindo a estes um prejuízo incalculável no valor futuro daquelas crianças. Um prejuízo a nível pessoal e social. Segundo este e usando uma metáfora, a sociedade construía-se no campo de futebol:

“No meu tempo, as crianças queriam jogar futebol e iam para a rua. Encontravam-se e apontavam os limites do campo imaginário, as balizas eram um par de pedras, medidas em passos. Os mais velhos, dividia-se e começavam a escolher a equipa uma década vez, começavam por escolher os melhores e os piores ficavam para o fim, mas todos jogavam. Quando havia um número impar, alguém tinha de ficar de fora e depois mediava-se a entrada em jogo. O gordo ia à baliza e era chamado de gordo e não havia problemas por causa disso, aliás todos tinham apelidos. As linhas e as balizas eram imaginarias por isso uma bola fora de campo, ou um remate a um poste qu enão existia era mediado, dependia mais de quem chutava, do que da trajetória da bola. Ali começava-se a formar a sociedade, através de socialização e hierarquias informais e criava-se respeito.

Hoje as crianças chegam ao campo de futebol, todo relvado, balizas feitas, equipados com as melhores chuteiras, adultos por todo o lado a dar instruções e os pais na bancada, como agentes. A criança não tem de pensar em nada e então, não pensam!

Uma das melhores palestras e lições sobre educação que tive oportunidade de assistir.

Eu acredito que todos os pais são bem-intencionados, da mesma forma que sabemos que apenas ter boas intenções não basta. As bolhas em redor das crianças podem e trazem certamente prejuízos incalculáveis

“Em Portugal, observa-se um crescimento contínuo no número de diagnósticos de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). Profissionais de educação e saúde atribuem este aumento a uma maior sensibilização da sociedade, melhor formação dos professores e maior atenção por parte das famílias aos sinais de alerta. Além disso, fatores como a maternidade mais tardia e possíveis impactos da pandemia de COVID-19 também são apontados como contributos para esta tendência.” – in Jornal Expresso; 2 Maio 2024

Poderemos relacionar este aumento com padrões comportamentais de isolamento das crianças dos seus pares?

Dito tudo isto e pegando em toda a experiência e conhecimento que tenho adquirido ao longo da minha carreira, eu acho que não há uma diferença nos jovens que há 20, ou 10 anos atrás procuravam desporto. Há é muito mais crianças e jovens a entrar neste meio e isso pode criar uma perspetiva diferente. Há também muito mais modalidades desportivas no mercado e todos a competir contra as redes socias que se apresentam como fáceis e aditivas, o mesmo tipo de adição promovido por vícios identificados como: álcool, drogas, jogo, etc… Mas as redes sociais ainda estão em modo “bar aberto”. Sempre que vejo um pai ou mãe a entregar um telemóvel para as mãos de uma criança para este se entreter, não vejo diferença como se lhe estivesse a ser dado uma garrafa de álcool, uns cigarros, ou uma droga qualquer acompanhado da frase: toma que isto acalma-te!

Á medida que há mais ciência evolvida no desporto, que estes se tornam mais técnicos, mais exigente, é curioso como temos que alargar cada vez mais as redes para tentar encontrar o próximo atleta olímpico.

Conclusão

Vivemos uma mudança profunda na forma como as crianças e jovens se relacionam com o desporto. Não é apenas o comportamento que mudou, mas todo o ecossistema em que estes jovens crescem: mais estímulos digitais, menos liberdade de brincar, mais pressão dos adultos, menos espaço para a descoberta autónoma. Os números apontam para uma crise de inatividade física e de compromisso desportivo, mas os dados, por si só, não captam a complexidade da realidade que vivemos no terreno.

Olhando em retrospetiva, não lidamos com “os mesmos jovens de antes”, e isso não significa que sejam piores ou melhores — são diferentes, moldados por um mundo diferente. Cabe-nos, enquanto treinadores e educadores, compreender essa mudança, adaptarmo-nos e, sobretudo, proteger aquilo que é essencial: o espaço para que as crianças sejam crianças, para que explorem, testem, falhem e cresçam em ambientes desportivos saudáveis e descomplicados. Mais do que treinar campeões, temos a missão de formar pessoas. E, nesse percurso, é urgente reequilibrar o papel dos adultos, restaurar o valor da brincadeira livre, e recentrar o desporto como uma experiência de prazer, descoberta e convívio — não como mais uma agenda imposta.

Se queremos manter os jovens no desporto, temos de voltar a dar-lhes razões verdadeiras para lá ficarem — e isso começa por ouvi-los mais e controlar menos.

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